O CAÇADOR E O VEADO


   Há muito tempo já -  há muito tempo - que o caçador saía e não
caçava. Há muito tempo já - há muito tempo - que ele andava  e andava e não via nem um rato que desse para caçar.

    Mas bichos, claro que havia. Tinha a certeza - pegadas, sítios de capim pastado, os cócós ainda frescos, mas ver um só animal, isso é que não. Há muito tempo já - não via nada.

    Um dia - há muito tempo também - DINIANGA DIA NGOMBE ficou à espreita na mata, quando viu vir um veado. Assim só - come que come, sem mais quê, nem mais cautela.
    "Estás a ver?! Amanhã vou-te caçar - pensou ele, o caçador. Amanhã, mesmo amanhã, não vais conseguir fugir. De um só tiro (bem centrado) ficas aí, amanhã. Sorte da minha panela, vai ser mesmo o teu azar"...
       E ao outro dia bem cedo, preparou a espingarda.Tomou a faca que andava sempre com ele. Fechou os cães num cercado p'ra  não espantar o bicho. Seguiu andando bem cedo (como eu já disse primeiro) e chegou.
       "Onde me vou esconder? - pensou outra vez o homem. Aqui não posso (logo o veado dá conta). Ali não consigo (com o vento assim a correr, ele fareja de pronto, e sabe que estou aqui). Melhor é subir na árvore. Este bicho quando come, fica de cabeça baixa: não vê nada. E o vento (se passa vento) leva p'ra longe o meu cheiro e, deste modo, o veado, escapa de me sentir".
E assim pensando, subiu. E assim  subido, esperou.
Veio o dia. Amanheceu. E do veado, nem sombras.
Veio a tarde. O sol queimou. E do veado, nem cheiro.
Veio a noite, quase noite, e do veado...nem nada.
Ficou ali todo o tempo, e o veado... quem viu?
Ao outro dia voltou.
        Mais uma  vez lá em cima, mais uma vez esperou. Veio o dia. Veio a tarde. Veio a noite, quase noite. Primeiro foi que amanheceu. Logo então o sol ardia. E quando, já à tardinha, o homem deseperava, o veado vinha vindo... de mansinho, pastando no seu descanso, tão descuidado e contente que o caçador...
        ...teve tempo de mirar, de apontar bem (bem no centro) de se compor lá em cima e de pensar: " Atiro agora, ou ainda não atiro"? E sem demora atirou.
        O veado caíu.
        E o sol (já quase no fim do dia) começou também lá longe, a querer descer p'ra dormir.
        " Tenho de esfolar o bicho" - falou o homem consigo, retirando a sua faca. "Antes da noite chegar, tenho de o ter arranjado".
       E começou com cautela (jeito de não estragar, a pele que tinha valor) a esfolar o veado.
         E quando já tinha tudo pronto (com a pele bem arrumada) olhou e viu: o veado, FUIM !!! Escapou. Cheio de frio coitado, sem o casaco da pele... 
- Dê-me a minha pele, senhor. Estou aqui meio gelado.
O caçador nem ouvia. Numa zanga.
- Essa então! Como é que você fugiu? Há direito? Tanto trabalho que eu tive de esperar, de matar, de esfolar, e você foge-me assim? Sem dizer nada? Que educação é essa que a sua gente lhe deu? Venha cá, senhor Veado.
-       Senhor, não. Eu ainda sou menino.
-       Ai é?! Pois então muito pior. Que anda um menino a fazer. Dentro  da mata sozinho e  a uma hora destas?
-       Tive fome e vim comer.
-       Ai é?! Você teve fome e já comeu - eu tenho fome, e preciso de comer.
-       Coma então. Fique à vontade. Dê-me só a minha pele, para eu poder ir embora.
-       Quem disse que vais embora, se és a minha comida? Quem disse que vais embora, se eu já te cacei a tiro?
-       Deixe a conversa p'ra logo: atire-me daí a pele.
Teimoso, o homem teimou:
-       Ai não atiro, não. Se eu atirasse, sujava. Vem buscá-la.
-       Já fui parvo e aprendi: uma vez só é descuido, duas vezes é burrice... Atire, não tenha medo. Se suja, posso lavar - água é coisa que não falta.
E o caçador muito esperto:
-       Não senhor: "Quem pede emprestado limpo, não pode entregar sujo".
-       Emprestado?! Deixe de ter cerimónias. Suja de sangue já está, com o tiro que me acertou. Ou você me dá a pele, ou vou-me embora sem ela.
-       Não tens vergonha?! Apareceres nú em casa? A tua mãe, o teu pai, o que é que vão dizer?
-       Dizem nada. Porque vergonha, vergonha, é mesmo p'ra ter você. Chega a casa e vai contar... “Atirei, matei e esfolei um veado. Vou preparar a panela, dirá a sua mulher. Não. Pele de veado não se coze na panela, é no sol que fica seca. Mas você matou o quê? Matou a pele, ou matou o bicho?"
-       Matei o bicho. Matei-te ou não te matei?
-       "Melhor que dizer matei, é deitar o osso fora e poder dizer: comi!".

E de um pulo, o veado, perdeu-se na escuridão.
O caçador? Nem te falo... boca aberta e mãos no ar, ficou na mata parado, a ver o bicho bazar.

DARIO  DE  MELO
Modificado
Tradicional Umbundo
JORNAL DE ANGOLA
Sup.319.1.l2.84
Versão Definit. no Livro QUERES OUVIR?