A ONÇA E O CABRITO

Vejam só, que a onça tinha medo do cabrito. E vamos lá que tinha um pouco de razão, porque o cabrito (que até por ser mais-velho, devia chamar-se bode) tinha chifres, barbicha grande, e uma cara de meter muito respeito. Respeito não. Medo é que era.
E o cabrito - que tinha idade de bode - esperto e ladrão, fazia tudo para que a onça acreditasse que ele era um bicho ruim.
- Ladrão, como? - estão vocês a perguntar ...
Eu conto tudo (tudinho) o que quiserem saber. Só não vale, nem é bonito, meter assim sem licença, palavra vossa em conversa do outro. Quem fala, fala; quem escuta, escuta ...
- E o que é issso de escuta?
É ouvir com atenção. Ainda agora eu falei, para não me interromperem, e logo-logo apareceu uma pergunta. Eu sei que ouviste o que eu disse. Só que ouvindo, distraído, se ouviste, não escutaste ...
Vou voltar então à estória da onça que tinha medo, do bode que era má cara, e do mais que aconteceu e vocês querem saber ...
- Ficámos então aonde?
No bode que sabia do medo que tinha a onça, explorava a senhora. Porque esta nossa irmã, tinha um palmar muito grande, e assim, com tantas palmeiras, tinha muito vinho em casa ... Vocês sabem ou não sabem, conhecem ou não conhecem, que o vinho da palmeira até se chama MARUFO? Pois é... Aqui mesmo nesta estória, se a onça tinha o vinho, o bode é que tinha a sede. E todos os dias chegava e era assim que dizia:
- Bom dia irmã.
- Muito obrigado. Bom dia - e a onça, cheia de medo, não parava de tremer.
- Está calor. Estou com sede.
- Pois é... o calor é muito.
- Pois é... a sede também, dizia o bode, fechando a cara e olhando p’rá cabaça do marufo.
De medo, a onça, quase nem podia andar. Tremia, e era a tremer que dava de beber ao tal de bode. Que bebia e mais bebia - depois de uma cabaça, outra. Depois de outra, mais uma.
- Até amanhã - dizia o bode sem pensar em pagamento.
- Fique bem, até amanhã - respondia a onça, sem receber, nem até só perguntar, quando é que você me paga...
E no outro dia, e no outro, lá estava o bode outra vez;
- Bom dia, irmã.
- Muito obrigado. Bom dia - e a onça tremelicava.
- Está calor. Estou com sede.
- Pois é... o calor é muito.
A onça bem queria ver se escapava de entregar as cabaças de marufo. Fingia não entender o que é que o bode dizia.
- Pois é... a sede também.
E a onça cheia de medo, dava de beber ao bode.
E o bode, bem que bebia, e quando mesmo, acabava - despedia, ia embora, nem dizia que obrigado, nem pagava.
Mas um dia...
Vinha o bode e vinha o filho - um cabritito pequeno, saltador e pernalta. Estava a onça e estava a filha - uma menina mais nova, que às vezes até saltava, mas hoje de tanto medo, nem mexia.
- Bom dia, falou o bode, cada vez mais malcriado. Quero beber, Tenho sede - E, conversando p'ró filho: Vai brincar com a menina enquanto eu bebo um bocado.
A onçazinha, coitada, cheínha de muito medo:
- Mas é que eu nem sei brincar, nem saltar como um cabrito.
- Não sabe, aprende, ora essa. Vai brincar que mando eu.
E a menina, nem pio - que o bode tinha uma cara! O bode tinha um focinho!... E aquela barba de mau, e os olhinhos de malandro... a menina nada disse, com muito medo lá foi.
- Vamos brincar ao de quê? - perguntou o cabritinho.
- Você é mesmo quem sabe, se é mesmo você que manda.
- Lutamos. Vamos lutar.
- Mas isso não é bonito: a gente nem está zangado...
Cheio de peito, o cabrito:
- Não faz mal. Podemos zangar agora.
E a oncinha a tremer:
- Mas eu não quero zangar ... e mesmo, não há direito, porque você é mais forte, e além de ser cabrito, é mais velho...
- Já disse: vamos lutar.
E, sem mais conversa, atirou-lhe uma marrada. A oncinha desviou: deu um pulo à sua esquerda e agarrou o cabrito, mesmínho pelo pescoço.
- Mé... Mé... berrava o coitado - tu estás a magoar-me.
- Tu é que querias lutar. Foste tu quem atacou.
E a menina não largava:
- Afinal a tua força está aonde, cabrito?
- Mé ... por favor, podes deixar-me ...
E a menina deixou, e foi ter com a mãe dela, e muito baixo contou...
- Venha mais uma cabaça, pedia o bode, contente. Este marufo é bem bom.
- É marufo de primeira, isso é - dizia a onça avisada, e já sem medo nenhum. Por isso é que eu vendo caro.
- Faz bem, comadre, faz bem: quem quer bom, paga melhor, dizia o parvo pensando que ainda metia medo.
- Então o mano concorda?
- Como é?! Não havia de concordar? Um marufinho como este, quem bebe, deve pagar. Ora então! E pagar bem.
- O compadre pensa assim?
-Penso. Claro que penso.
- Então se pensa, compadre, porque é que pensa e não paga?
- Eu?
E o bode fez cara feia, mostrou chifres, mostrou barba, deu pulos, ficou medonho...Só que a onça sorria.
- Focinho de cara má, não paga marufo bom. Deixe de andar a dançar. Ponha aí o dinheirinho: são trinta dias do mês; são seis cabaças por dia ...
- Melhor é tomar cuidado - ameaçava o ladrão... Você não sabe quem sou?...
- Ai sei, compadre, isso sei. Agora mesmo é que eu sei: você é igualzinho à família do seu filho. Tem forças só na garganta p'ra chorar e dizer MÉ. Se eu lhe agarrar no pescoço... quer experimentar compadre?
Não quis. E trinta dias de um mês, a seis cabaças por dia (o bode nem disse nada) pagou.
E desde então para cá: nunca mais!...

Conto Tradicional Kissorongo

Adaptação livre de RÙBEN TITO
JORNAL DE ANGOLA /Sup.263/l5.10.83
Versão Definit. no Livro VOU CONTAR