A PEDRA QUE PARTE A CABEÇA


   Pus-me a pensar e a ouvir o que dizia a Tesoura à Caixa de Fósforos...
-       Pois nem lhe conto o trabalho que tenho! Corto vestidos, fatos e cabelos - e hoje, como vê, vim ajudar estes meninos a brincar (e a recortar ) bonecos de papel.
-       Ora! O que você faz é lixo. Nem quero ouvir o barulho que a mãe deles vai fazer.
   E a mãe entrou (e começou a ralhar: a sala toda suja, tudo tão desarrumado...)
-       Que lixeira é esta?
-       Estamos só a brincar...
-       E a sala é que é lugar de brincadeira?
-       A gente varre depois, mãe.
   Se varreram ou não varreram, não sei: Esqueci de ver. Fiquei com atenção na Caixa que falava e vinha lá de dentro do fundo da cozinha.
-       Eu não disse? Porque é que você não escolhe um trabalho como o meu? Isto é que é trabalho: limpo e importante...sem mim que acendo o lume, não haveria comida: o leite dos bébés não aquecia; o chá dos mais velhos não fervia; o funge de todos não se podia fazer.
E a Tesoura (zangada agora) respondendo com raiva a tanta vaidade tola:
-       Olha só como ela fala! Você já esqueceu a sua vida de queimadora de casas? De deitadora de fogo nas matas e nas lavras? De bandida matadora de passarinhos novos que são os menininhos do céu ? ...
-        
E lembrou-lhe (e começou a contar) a estória da perdiz que tinha quatro filhos. Três aprenderam a voar. O outro não: tinha asas pesadas de preguiça e só pensava em dormir.
        No tempo de caça, apareceram os homens e a Caixa. Fizeram uma queimada. Deitaram fogo a tudo quanto havia. Quem podia fugir, fugiu. Quem sabia voar, voou (e foram três os perdigotos que voaram). Um ficou, tinha preguiça, não quis levantar logo...Dormiu (até que o fogo chegou, até o fogo queimar, asas, preguiça e tudo...)
        A Caixa ouviu, envergonhou e calou:
-       Afinal, quando mal utilizada, em vez de bem sou desgraça.
E a tesoura pensou:
-       Eu também. Ás vezes pico e até corto.
E as duas ficaram tristes: a Tesoura não queria cortar mais (enferrujou-se)  com medo de fazer mal . A Caixa começou a procurar água para se molhar (e se estragar) e não acender  mais nem um fósforo.
   Foi aí que eu, que estava mesmo à portinha da conversa, falei e disse:
-       As coisas não são boas nem más. É conforme o serviço que a gente com elas faz ...
   " Pedra que parte  a cabeça, também serve para segurar o muro".

        E elas ouviram e aprenderam. Juntaram-se e combinaram:
       
-  Vamos trabalhar para um sítio onde ninguém nos obrigue a fazer mal?

           E foram. Entraram num hospital. Ali, a estória era outra ...  
Era uma vez, uma dona que ia ter um bébé.A gente sabe: Quando um bébé nasce é preciso água bem quente, tesoura fervida e mais o resto também.
       A parteira chegou. A Caixa acendeu um fósforo. A Tesoura ferveu.
       E o bébé, o menino (ou seria menina?) nasceu.
                                                      
                                                    DARIO DE MELO

                                    JORNAL DE ANGOLA