A  MÃO E A BOCA


       Vocês sabem como a boca é preguiçosa: só fala e não trabalha, só come, come e mais nada.  As mãos é que sim:  fazem o serviço todo...Na lavra, semeiam, plantam e capinam; No almoço servem: acondutam  com o molho e levam o fungi  à boca.  Ela é quem come e quem gosta, quem fica assim, satisfeita...
        E sabem então porquê?
        Pois não sabem. Vou contar...
        Ali p´ras terras da Lunda, vivia a Boca e vivia a Mão. As duas na mesma aldeia.  Um dia aconteceu combinarem ir de negócio à Nhemba.
Era essa a sua vida: iam para Sul, no Menongue, vender uns fardos de
Panos e mantas; voltavam depois para cima com as imbambas trocadas: traziam cabras e bois, ou mesmo ovelhas e armas.

        Andando e andando, tinham andado muitos dias já, quando o céu se escureceu. A Boca  pôs-se a falar:

-       Olha só, que vai chover. Vamos ficar mesmo mal - os fardos vão se molhar. Não escapa: os panos, nossas mantas, nosso negócio com a chuva, vai ser negócio ruim...
-        
E porque fala e falava, a Boca nada fazia.A Mão - essa - cortava capim de um lado, arrancava paus do outro, sempre a ferver no trabalho de construir uma choça.  Acabou, meteu-se dentro. A Boca continuava...

         Mas quando a chuva pingando, ganhou vontade para cair com mais força pediu licença de entrar.

-       Aqui não te metes, disse a Mão.“Quem faz a casa, descansa no proveito”. 
        -   Tens razão. Eu vou ficar aqui fora.Deixa só que eu ponha dentro os fardos do meu negócio.
        -   Não . Também não. “Negócio de cada um, não se guarda em casa alheia”.

E chovia (se chovia!) e toda a noite chovia e acabou de chover. O Sol veio. Então a Boca (molhada pela noite inteira) falou e disse para a Mão:
-       Irmã: vamos esperar um pouco. Deixa-me secar a roupa e estender os meus panos.
-       Não. Já atrasamos bastante. Vamos mesmo assim embora. “Lagarto que fica ao sol, é porque não tem serviço“. A gente tem.

        E foram andando e andando e chegaram a uma aldeia e dormiram. A Mão abriu os seus fardos. Permutou bem: panos por ovelhas e cabras, mantas por bois e armas. A Boca bem quis vender, mas toda a gente gozava:

-       Quem vai querer por esses panos com bolor? Olha só!...

        E  nem tinha acabado de tirar tudo, já estavam a voltar. A Mão é que tinha pressa :

-       Não percas tempo: se a boca  fala  e a orelha escuta, os olhos é que compram. Ninguém te vai comprar nada.

        E voltaram - andando e andando nos dias do   seu regresso. No caminho estava um homem.

        -  Como é então, ó Boca? Voltas assim, carregada, sem fazer o teu negócio? Vamos fazer uma troca, disse o homem. Dá-me os teus panos  que eu dou-te o meu cão.
-       Um cão sózinho por estes meus panos todos?
-       Olha bem: este cão, não é mesmo um cão qualquer. O serviço que ele faz, é de apanhar elefantes.

 A Boca aceitou. E andando, sempre andando até chegarem à terra. Aí, sim senhor...
       ... A Mão era bem cumprimentada. Vinha rica. Tinha bois e tinha cabras. Tinha ovelhas e tinha armas - tinha tudo.  A Boca nem dava para lamentar: vejam só, trazia um cão!
        Um cão que apanha elefantes - muito bem ! E os elefantes estão onde, se na terra não havia? ... Então para que serve o cão ?

         E o tempo que passou passou, até que um dia, na lavra...

         ... mandiocas que pões hoje, amanhã já te comeram. Andava ali elefante - ou só um, ou muitos mais, ninguém sabia de certo.
       
- Minha irmã, pediu a Mão, favor só um que  eu lhe queria: de me emprestar o teu cão.
-       Ai é?... Tu que me fazias pouco, agora queres o meu cão?
        E a  Boca fala-falou, disparatou  um bocado.  Ela também conhecia palavras de dar ajuda. Disse então:

-       Leva o cão mas tem cuidado: nunca lhe deves bater.
-       Podes ficar descansada.
-       E olha bem, minha amiga - que não me percas o cão. Vê se tomas atenção: um cão que apanha elefantes,nem nada  o pode pagar.

        E a mão (que só pensa em trabalhar, fazer coisas, não perder tempo, sempre a mexer, a mexer) já estava sem paciência de aturar quem só falava. Pegou no cão foi-se embora. Entrou na lavra e esperou que os elefantes chegassem.

Chegou um. O cão correu. O elefante caíu. Veio a Mão, trazia arma e logo ali o matou. Vocês sabem: “cão que tem nariz na carne, não espera por licença para poder mastigar“. E a Mão (que não pode estar parada, nem quieta, sempre a mexer que até bate) mal viu o cão a comer atirou-lhe uma palmada. Nem foi por mal. Mas só então se lembrou que não devia bater.
         Porque a verdade foi esta: mal ela veio e bateu, o cão sumiu (ou fugiu, ou até nem sei)...

-Minha irmã: venho-te pagar o cão.

Trouxe primeiro as ovelhas. A Boca olhou  e disse:

-       Estão gordas, estão. Mas só assim, as ovelhas, não dão p´ra pagar o cão.

E mandou buscar os bois. A Boca apreciou ...

-       Lindos bois, isso é que são. Mas mesmo assim, tudo junto, não dá p´ra pagar o cão.

Foi a Mão - foi ela mesmo - buscar as armas que tinha.

-       Que boas que as armas são!  Mas falta ainda, não chega; não dá p´ra pagar o cão.
-       Senhora - falou a Mão - não tenho mesmo mais nada. Já dei tudo quanto tinha. Mas como não chega ainda, trabalharei para ti. Vou ficar ao teu serviço.

E ficou. E é desde aí, que a Boca (a nossa Boca) só fala e come e mais nada. A Mão faz tudo:  cava, semeia, planta, capina, colhe, seca, lava, trata, cora, tempera, cozinha... põe no prato, mistura o funji no molho e até vai levar, mesmo à portinha da Boca.

E a Boca, sem mais trabalho, come. O funji nem mastiga : gosta, engole e fica assim, satisfeita à espera que venha mais ...

Mas lhem só: e se um dia, a Mão pensa em descansar?

Coitada da D. Boca! Ou come as suas palavras, ou se quiser mandiocas tem mesmo que trabalhar.

                                    
                                                   CINQUENTA CONTOS QUICOS
                                    Adaptação Livre de  DARIO  DE  MELO
                                                         AS NOSSAS ESTÓRIAS
                                     JORNAL  DE  ANGOLA/
Sup. Nº 248/02.07.83